“O Direito Ambiental é uma disciplina que, mesmo em 2024, não é oferecida em caráter obrigatório na maioria das faculdades”

LYM H

Por 20 anos, Letícia Yumi Marques atuou em escritórios de advocacia em São Paulo, sempre na área jurídica ambiental. Duas décadas de experiência renderam à advogada o prêmio Rising Star of The Year 2024 na categoria Environment, concedido pela prestigiada publicação inglesa The Legal 500, reconhecimento que foi uma maneira “de fechar um ciclo com chave de ouro”. Hoje Letícia reside na Amazônia, onde é doutorada em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

 

Viver na cidade que será sede da COP 30 — Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada em 2025 em Belém — foi um das motivações para concorrer ao doutorado pela UFPA. Para Letícia, de alguma forma o Direito Ambiental do dia a dia também não empolgava mais, o estilo de vida da Faria Lima não fazia mais sentido. Em entrevista à CLIMÁTICA, a advogada, que hoje também é professora nos cursos de extensão da Universidade Presbiteriana Mackenzie, fala sobre temas tão novos quanto urgentes para a pauta ambiental.

 

 

Leia também: O relato de uma advogada ambiental na Amazônia

 

 

O termo Justiça Climática ainda é pouco conhecido pela sociedade civil e mesmo no mundo jurídico. Como você explicaria o conceito para os dois públicos?

 

Não existe um conceito único e determinado para o termo, mas a ideia preponderante diz respeito ao estabelecimento de políticas e instrumentos para enfrentamento da crise climática que considerem não apenas as questões ambientais e do clima em si, mas especialmente os seus impactos negativos na sociedade, que atingem em graus diferentes pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade.

 

As fortes chuvas que destruíram em 2023 regiões do Litoral Norte Paulista e do Rio Grande do Sul são casos de eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes. Como eles têm impactado o sistema Judiciário brasileiro? E como o nosso Judiciário está mais avançado ou atrasado em relação a outros no mundo? Como você avalia a advocacia voluntária nesse cenário, como o trabalho realizado pelo Instituto Pro Bono? 

 

Pessoalmente, não considero que as chuvas de 2023 no Litoral Norte de São Paulo sejam bem enquadradas no conceito de eventos climáticos extremos, que são aqueles que fogem da média histórica e que são, portanto, difíceis de prever e de gerenciar. Não é novidade para ninguém que chove forte no verão, digo, não se pode alegar que o Poder Público foi pego de surpresa com a situação e não teve tempo de agir preventivamente. Eventos climáticos extremos têm acontecido com mais frequência, mas não podem servir de desculpa para inação do Poder Público, que deve se antecipar com medidas preventivas em épocas de chuvas fortes.

 

O Poder Judiciário brasileiro tem se capacitado mais nos últimos anos para lidar com questões multidisciplinares, como as que envolvem o meio ambiente. É importante lembrar que o Direito Ambiental é uma disciplina recente e que, mesmo em 2024, não é oferecida em caráter obrigatório na maioria das faculdades de Direito. Muitos juízes sequer tiveram essa matéria na faculdade, daí surge uma dificuldade natural de lidar com o tema que envolve análise de pontos não-jurídicos, como laudos ambientais. Todavia, percebo uma mudança positiva na jurisprudência dos tribunais superiores (STF e STJ) de 2010 para cá. Os tribunais têm buscado ouvir a comunidade científica e a sociedade civil, o que é importantíssimo para uma tomada de decisão informada e para fortalecer a democracia participativa. Com isso, a assertividade e qualidade das decisões foi muito aprimorada.

 

 

Atualmente, temos em andamento no Brasil dezenas de ações climáticas que tratam do tema de forma direta, como políticas públicas para o enfrentamento das mudanças climáticas e o cumprimento das metas do Acordo de Paris, e indireta, por meio da exigência de inventário de gases do efeito estufa no licenciamento ambiental, por exemplo.

 

O Instituto Pro Bono tomou a iniciativa muito positiva de divulgar workshops e conteúdos sobre Direito Climático e Justiça Climática para apoiar advogados e advogadas que queiram, voluntariamente, apoiar grupos ou entidades que tenham sofrido impactos negativos com a crise climática. Como eu disse antes, mesmo atualmente, muitas faculdades não têm essa disciplina na grade, então compartilhar o conhecimento de uma área tão especializada é importantíssimo para ajudar colegas que queiram contribuir com a Justiça Climática. O primeiro passo é identificar se o prejuízo ou dano em questão decorre da crise climática ou de um impacto meramente ambiental (são coisas diferentes, embora relacionadas, e que têm tratamento jurídico distinto). O advogado ou advogada deve estar preparado para ouvir o cliente pro bono e entender se o melhor caminho para apoiar a entidade ou pessoa vulnerabilizada é uma ação climática, ambiental ou ambas.

 

A litigância climática é uma estratégia para chamar empresas, indústrias e poder público a assumirem suas responsabilidades no combate à crise climática. Hoje cada uma dessas esferas é confrontada com desafios legais, financeiros e reputacionais que antes não existiam. Quais os maiores desafios, na sua opinião?

 

Incorporar o enfrentamento das mudanças climáticas no propósito do negócio de forma genuína. Enquanto não ele for legítimo na cultura da empresa, não vai adiantar fazer relatório ESG, porque a vida real, escancarada nas redes sociais, vai fazer afirmações vazias ou inverídicas caírem em descrédito. Em geral, advogados, quando assessoram nesse tema, estão mais preocupados em redigir informações de forma genérica e cheias de disclaimers para evitar riscos, mas, na verdade, o que importa é ser transparente, reconhecer o que foi feito e o que falta fazer, estabelecer metas e cronograma para implementar o que falta e, sim, lidar com eventuais consequências legais. É uma autoavaliação. Tem que haver coerência. Não é fácil chegar nesse ponto, por isso é tão desafiador.

 

A partir da sua experiência em escritórios de advocacia, qual sua percepção pessoal sobre a preocupação de empresas e de governos em relação à pauta climática? E em relação aos escritórios de advocacia especializados, você acha que eles estão preparados para lidar com conceitos relativamente novos, como greenwashing e racismo ambiental?  

 

Empresas sabem que o tema é importante, mas tratam dele preventivamente por questão de custos. Em geral, as empresas são reativas, especialmente em época de crise, por uma razão bastante simples: a prioridade passa a ser manter a saúde financeira da empresa e a sustentabilidade econômica do negócio, pagar empregados, fornecedores, impostos. Investimentos em temas ambientais não trazem retorno em curto ou médio prazo, dificilmente serão prioridade para as empresas, então a maioria faz o mínimo, que é atender a legislação. Fazem bem-feito, até, mas não vão além – e em tema de Justiça Climática e ESG, a ideia é justamente ir além da mera conformidade legal.

 

Para os governos, o tema vira pauta partidária e não de Estado, como temos visto na nossa atual sociedade polarizada.

 

Os escritórios de advocacia não estão prontos. A maioria enxerga no tema uma oportunidade de negócio e se capacita de forma superficial, instrumental. Mas o tema é complexo e a compreensão de conceitos novos, que vêm de outras áreas do conhecimento, demanda dedicação e estudo e, principalmente, mente aberta para entender que o advogado e advogada não são protagonistas quando o assunto é sustentabilidade, ESG ou mudanças climáticas. Nosso papel é de contribuição, não de liderança e jamais de uma posição supostamente superior — aliás, para a geração Z, o Direito nem é mais uma carreira mais tão cobiçada. Estamos em 2024 e ainda tem advogado ou advogada que se apresenta ou exige ser chamado de “doutor, doutora”. Isso não faz mais sentido e não tem espaço na construção de uma agenda multidisciplinar, com profissionais de outras áreas do conhecimento.

 

Em março ocorreu em Brasília um evento para discutir a Justiça Climática, com participação do Governo, de universidades e da sociedade civil. De que maneira você acha que o cidadão comum pode contribuir com o tema?

 

Levando sua opinião ou simplesmente tirando dúvidas de forma individual ou coletiva, por meio de entidades de representação ou associações. Qualquer forma de participação é bem-vinda e legitima o processo de construção de políticas públicas. É importante, nesses espaços, que as pessoas possam se manifestar livremente e que tenham resposta de qualidade, ou seja, direcionada à sua fala, e não limitada a “agradecemos a sua participação”. Ainda que a resposta ou a decisão final seja contrária a seus interesses, as pessoas tendem a concordar mais se tiverem a oportunidade de colocar seu ponto e vista e d participar do que está sendo decido. São dados que vêm da sociologia ambiental, não do Direito, e essenciais para as discussões sobre sustentabilidade social.

 

O ministro Silvio Almeida comentou que “das várias conclusões que se pode tirar da leitura do relatório final da PF sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, uma delas parece de suma importância para o desafio da segurança pública e da promoção dos direitos humanos: a questão fundiária, do acesso à terra, ao território e do direito à moradia”. Qual paralelo da sua declaração é possível fazer com a pauta climática? 

 

A insuficiência de políticas públicas para moradia, um direito humano e fundamental, empurra pessoas vulnerabilizadas a lugares periféricos e que, muitas vezes, oferecem riscos ou cuja ocupação é vedada pela lei ambiental, como morros e encostas ou áreas de mananciais, mais expostos aos efeitos das mudanças climáticas. Uma crítica contundente à forma pela qual os líderes dos países vêm discutindo as ações globais para enfrentar as mudanças climáticas diz respeito justamente à ênfase a mecanismos de financiamento para conservação das florestas em detrimento da qualidade de vida e acesso a direitos dos grupos vulnerabilizados, a maioria negra ou indígena, que está nesses espaços. É importante incluir o tema da justiça e do racismo ambiental na pauta climática, associando a diminuição de emissão de gases do efeito estufa à distribuição de renda, acesso à saúde e moradia de forma equitativa. Não se alcança a sustentabilidade ambiental sem antes alcançar a sustentabilidade social, já dizia Robert Goodland, autor do clássico The Concept of Environmental Sustainability. A solução deve ser holística. Não há soluções simples para problemas complexos.

 

 

Em março, o vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin, cobrou empenho dos países mais ricos em propor soluções de combate à crise climática e disse que “os ricos poluem e os pobres pagam a conta”. De que maneira o Judiciário e o Governo brasileiros podem unir esforços para cobrar essa conta?

 

É preciso que o Governo brasileiro empregue de forma eficiente os recursos que recebemos dos países ricos. Isso é premissa para receber apoio financeiro e, para isso, também é necessário que o Brasil aprimore os instrumentos de controle ambiental para, ao mesmo tempo em que investir na preservação, combater o desmatamento ilegal e recuperar áreas degradadas. O Governo tem que fazer a sua lição de casa que, no fim do dia, nada mais é do que assegurar o cumprimento da legislação ambiental. O Judiciário tem feito sua parte, impondo ao Executivo o cumprimento de metas de descarbonização assumidas em acordos internacionais e a implementação de políticas públicas.

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