A PEC dos Direitos da Natureza, da deputada federal Célia Xakriabá (Psol – MG), defende que a Natureza deva ser um “sujeito de direitos”, ao invés de mero objeto ou recurso a ser explorado. A proposta de emenda à Constituição pretende alterar o dispositivo constitucional sobre dignidade da pessoa humana para incluir a dignidade planetária.
Hoje mais de 40 países já reconhecem a Natureza como sujeito de direitos em suas constituições. Boa parte das iniciativas é inspirada nas cosmovisões dos povos originários desses territórios, que possuem modos de vida inter-relacionados com a Natureza.
Municípios brasileiros como Florianópolis (SC) e Bonito (PE) seguiram um caminho semelhante graças à atuação atores políticos e de organizações como a Mapas, que por meio de um trabalho de advocacy e de assessoria técnica tem desempenhado um papel crucial como articuladora das propostas no Legislativo. Bonito foi pioneira no Brasil ao alterar em 2017 sua Lei Orgânica reconhecendo o direito da Natureza de existir, de evoluir e de prosperar e prevendo que a cidade deve garantir um meio ambiente ecologicamente saudável para todos os seres, não só os humanos.
Fundadora da Mapas, Vanessa Hasson liderou as duas iniciativas municipais e colaborou, junto com outros especialistas em Direito Ambiental, na construção da proposta de Célia Xakriabá no Congresso. Doutora em Direitos da Natureza pela PUC/SP em 2014, Hasson acredita no poder que a PEC tem de iluminar por meio do seu texto. “Primeiro aspecto prático é o de ser uma ferramenta pedagógica de transformação das consciências humanas, a ampliação dessas consciências, de que somos natureza junto com os demais seres”, diz.
“A proposta de emenda à Constituição pretende alterar o dispositivo constitucional sobre dignidade da pessoa humana para incluir a dignidade planetária e amplia o Artigo 225 para atender a todos os seres, humanos e além humanos, além de inaugurar um capítulo para tratar dos direitos fundamentais dos povos originários e sua correlação com os direitos da Natureza”, acrescenta a pesquisadora.
Ao todo, oito cidades no Brasil já reconhecem os princípios do Direito da Natureza em suas Leis Orgânicas. Quatro rios brasileiros também tiveram seus direitos intrínsecos reconhecidos: o rio Laje, em Rondônia (que teve o nome original, Komin Memem, retomado), o rio Mosquito, em Minas Gerais, e os rios Vermelho e Meia Ponte, em Goiás.
Há duas décadas pesquisadora da ecologia profunda — corrente da filosofia ambiental que se opõe à visão convencional da ecologia, segundo a qual o meio ambiente deve ser preservado devido a sua importância para as pessoas — Hasson lembra que em Bonito e no rio Komi-Memem o reconhecimento da Natureza como sujeito de direitos vem fortalecendo os ecossistemas e as próprias comunidades. No caso de Bonito, vem permitindo arranjos produtivos em uma economia mais solidária.
“Em Bonito houve toda uma transformação da monocultura da banana e do aipim para uma diversidade de culturas e de arranjos produtivos, com os pequenos agricultores e agricultoras familiares transformando a um só tempo a condição de regeneração do solo”, exemplifica. “Outro resultado prático foi no município de Guajará Mirim (RO), onde um rio foi reconhecido o primeiro rio brasileiro como um sujeito de direitos. Nessa Lei Ordinária, de reconhecimento dos direitos desse rio, se instalou o Comitê Guardião, que já está em fase de implantação”, diz.
O primeiro país a reconhecer os direitos da natureza foi o Equador, em 2008. Hoje o país e expõe o paradoxo de ter uma Constituição pioneira, mas sem os efeitos práticos imaginados, ao extrair petróleo em uma das florestas com maior biodiversidade do mundo, o Parque Nacional Yasuní, na Amazônia Equatoriana. Para Hasson, isso reflete o modo como o pioneirismo se deu.
“Existe uma luta muito bonita na região do Yasuní exatamente em função do reconhecimento dos direitos de Pacha Mama. A comunidade se movimenta muitíssimo, mas queria destacar algo que já ouvi mais de uma vez de asambleístas do Equador, de que a Constituição Federal, tendo reconhecido os direitos da natureza, ficou em um patamar inacessível às comunidades. Estar na Constituição não chegou até as bases das comunidades. No Brasil, começamos pelas bases, pelos municípios, que é onde a legislação se comunica com as pessoas. É nesse nível que a vida a acontece. Pulverizar o número de municípios que reconhecem os direitos da natureza é a nossa principal meta”.
Para Hasson, a elevação da Natureza a um novo patamar fortalece a legislação ambiental e pode influenciar no endurecimento das punições indenizatórias e na recuperação dos danos cometidos. “Quando a gente reconhece os Direitos da Natureza, a gente está operando nesse outro nível, que é um nível de mudança de paradigma, de um paradigma antropocêntrico para um paradigma ecocêntrico”.