André Dib é referência em fotografia documental no Brasil. Entre ensaios e reportagens, nas duas últimas décadas colaborou para publicações no Brasil e no exterior, como a National Geographic, a Scientific American e o The Guardian, quase sempre com imagens que ressaltam a fauna, a flora e o modo de vida dos povos originários.
Em fevereiro, algumas de suas fotos ganharam destaque na prestigiada Nature, em um estudo de pesquisadores brasileiros que afirma que a devastação na Amazônia pode chegar a ponto de não retorno até 2050 — estágio a partir do qual a floresta passaria a morrer de maneira acelerada, com modificações no bioma e um processo de colapso.
Apaixonado pela vida ao ar livre, Dib já esteve em pontos isolados do planeta, como a Antártida e a Selva Central do Peru, onde documentou a vida de povos originários em isolamento, ameaçados pelo narcotráfico. Das andanças por diferentes biomas, guarda uma certeza: ‘É difícil ser otimista diante de tudo que estamos vendo, diante das previsões catastróficas que vêm se confirmando”.
Em fevereiro a revista Nature publicou um estudo liderado por pesquisadores brasileiros, com fotos suas, que afirma que devastação na Amazônia pode chegar a ponto de não retorno em 2050. Há quanto tempo você viaja como repórter fotográfico para a região e o que tem percebido cada vez que volta?
Viajo pra Amazônia há mais de 20 anos e é evidente o encolhimento da floresta em vários pontos, com o crescimento expressivo do desmatamento em decorrência do avanço das fronteiras agrícolas, sobretudo a pecuária que fomenta a grilarem de terra e traz, além do desmatamento em si, um grau altíssimo de violência no campo. Sem falar na exploração florestal e no garimpo. Isso começou lá atrás, com o estímulo de ocupação pelos governos militares, com um recuo em meados dos anos 2000.
Eu comecei a documentar a Amazônia em 2003, 2004, e acompanhei um bom momento em que o Brasil e o mundo voltaram os olhos pra essa região. Não que não houvesse desmatamento, mas a coisa era tratada como uma ilegalidade a ser combatida. A partir de 2017, entretanto, presenciei um ponto de inflexão, um marco negativo nesse sentido, com o desmantelamento de políticas públicas relacionadas à conservação, à fiscalização… Algo que foi se acentuando abruptamente nos anos do governo Bolsonaro.
Você tem atuado em documentários ambientais para organizações como WWF, Greenpeace e SOS Amazônia. A partir da sua experiência nesses trabalhos, é possível dizer que já avançamos na pauta ambiental? Em quê?
Apesar dos retrocessos que vivenciamos a partir de 2017, vejo bons exemplos. Tem muita gente boa acreditando e empenhando esforços no potencial da floresta de pé, no potencial da extração de óleos naturais, de princípios ativos que muito provavelmente trarão a cura para as enfermidades que assolam a humanidade. A Amazônia é o maior banco genético do planeta. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e a Reserva Extrativista do Médio Juruá, no Amazonas, são dois bons exemplos de que é possível repensar as formas de se gerar riqueza incluindo os povos da floresta nessa cadeia. Talvez o único futuro possível esteja aí.
Você é um defensor e habitante do Cerrado e recentemente comentou no Instagram sobre o aval da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara a projeto que diminui proteção à vegetação nativa não florestal dos biomas brasileiros, como o Cerrado. Você acredita que este é hoje é o bioma mais ameaçado?
O Cerrado hoje é o bioma mais descuidado, digamos assim. Porque compreende uma área enorme dentro do território brasileiro e porque é nele que se concentra a expansão das fronteiras agrícolas, sobretudo a agricultura de larga escala. E é um bioma que não tem a proteção que, em tese, resguarda a Amazônia e a Mata Atlântica. A Amazônia, por exemplo, tem 50% da sua área protegida, enquanto que o Cerrado possui somente 20% e não tem o apelo emocional e visual dos ecossistemas florestais. O Fundo Amazônia, que foi destravado agora, por exemplo, tem por finalidade captar doações internacionais para a preservação da floresta. Para o cerrado, não há nada parecido, nesse sentido.
Esse projeto de lei aprovado na CCJ da Câmara, que segue para o Senado e que reduz a proteção daquilo que eles chamam de “áreas não florestais”, é de uma estupidez sem tamanho. Isso porque põe em risco não somente o Cerrado, mas todos os biomas que possuem essa fitofisionomia campestre, como a Caatinga, o Pampa, o Pantanal e até a Mata Atlântica, com enormes áreas de restinga no litoral, que são ecossistemas muito frágeis, e até mesmo a Amazônia, porque é no Cerrado onde há grandes porções de savanas e campos e que são fundamentais para o processo hídrico que abastece inclusive a Amazônia. Grandes rios amazônicos nascem no Cerrado.
Em 2016 você viajou com o antropólogo Pedro Alex Viana percorrendo os caminhos da Selva Central do Peru para se encontrar com os Asháninka, povos originários ameaçados por invasores e por narcoterroristas. O que mais chamou atenção nesse trabalho?
Esse foi um trabalho que fiz a convite do antropólogo Pedro Alex, que estudou os Asháninka durante cinco anos. Eu tive a oportunidade de documentar um grupo desse povo na Selva Central Peruana. Segundo o Pedro Alex, os Asháninka, que vivem nas alturas da Cordilheira de Vilcabamba, no Vale do rio Ene, na Selva Central do Peru, buscaram refúgio nas áreas isoladas da floresta para escapar da caça de escravos, que começou no ciclo da borracha e permaneceu até 1970, e mais tarde para fugir da violência instaurada pelo grupo guerrilheiro Sendero Luminoso, no fim dos anos 1980, com remanescentes até hoje.
Pela inacessibilidade desse território, muitas famílias ainda se mantêm isoladas, buscando o kametsa asaike (que significa viver bem em língua Asháninka), sua filosofia política. Acho que esse foi o grande aprendizado. Nesse vale que é ainda o maior produtor de pasta base de cocaína do mundo, controlado por grupos narcoterroristas, eu e o Pedro percorremos durante 15 dias os caminhos mais intrincados da floresta, em trilhas indígenas de difícil acesso, em busca das últimas famílias que vivem em isolamento. Tivemos a oportunidade de conviver e aprender um pouco com eles, além de entrevistá-los, fotografá-los e iniciar um diagnóstico sobre os riscos e a violência que os circundam.
Você está quase todo tempo em contato com indígenas, pesquisadores, indigenistas e outros profissionais que lutam em defesa dos diferentes biomas da Terra, deve ter memórias inspiradoras sobre essas pessoas. Você se considera um otimista em relação à crise climática?
É difícil ser otimista diante de tudo que estamos vendo, diante das previsões catastróficas que vêm se confirmando. Aqui no Brasil, pra citar somente essa estupidez em âmbito nacional, vivemos anos de negação e ataque à ciência e hoje as consequências estão aí, sendo sentidas, sobretudo pela população mais vulnerável. Segundo o ultimo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, se a temperatura global subir 1,5 graus, como os dados indicam, atingiremos um nível crítico ainda não sentido, com ondas de calor, enchentes, tempestades mais rigorosas e secas mais prolongadas. É preciso um compromisso ambicioso das nações pra que esse colapso natural não se confirme.