Cavalo caramelo resgatado no telhado em enchente no Rio Grande do Sul (reprodução TV Record)
*Letícia Yumi Marques
A tragédia climática no Rio Grande do Sul e as imagens desesperadoras que vemos nas redes sociais parecem, ao menos neste momento, ter unido uma sociedade polarizada na solidariedade às famílias que perderam tudo, contabilizam mortos e seguem com suas vidas em risco. Acontecimentos marcantes como este ocupam o noticiário, as conversas, as redes sociais e sintonizam as pessoas em torno de uma questão relevante, que passa a ser, ainda que temporariamente, o centro das atenções. Para Brian Doherty, esses espaços são vistos como de “janelas de oportunidade” para viabilização de pautas que, embora sejam recorrentes e venham sendo discutidas há algum tempo, ganham projeção na esteira desses eventos. É o caso dos eventos climáticos extremos e o (des) preparo do poder público para lidar com as mudanças climáticas e com seus efeitos.
As mudanças climáticas
Que as mudanças climáticas existem, existem. Isso não se questiona mais. É uma certeza científica, derivada de milhares de pesquisas sobre sustentabilidade realizadas ao redor do mundo nas últimas décadas (Robert Kates indica que, de 1974 a 2010, foram publicadas mais de 20 mil pesquisas sobre o tema por mais de 37 mil autores de 174 países diferentes).
Nas décadas de 1980 e 1990, o tema era tratado como “aquecimento global”, até que se convencionou alterar essa expressão para “mudanças climáticas”. A expressão parece mais adequada aos efeitos da degradação da camada de ozônio, que influencia na capacidade da atmosfera de refletir radiação solar. Mas por que esse fenômeno ocorre?
Você provavelmente já ouviu em algum lugar que a Terra já passou por diversas eras glaciais (alteração severa do clima do planeta) e que a última delas ocorreu há milhões de anos de forma natural. Também já deve ter lido ou ouvido que o fenômeno da glaciação é cíclico e que, possivelmente, a Terra passará por outra era glacial algum dia.
Tudo isso é verdadeiro, mas não é a causa por trás das mudanças climáticas que estamos vivendo na atualidade.
Para John Hardy e muitos outros cientistas, as mudanças climáticas em curso decorrem dos impactos humanos no meio ambiente, que levam ao aumento da concentração de gases do efeito estufa na atmosfera (dentre eles, o metano e o famoso dióxido de carbono). Pesquisa de Hassan Heshmati aponta que a maior parte desses gases presentes hoje na atmosfera vem da queima de combustíveis fósseis, intensificada no século 19, durante a Revolução Industrial, problema que é agravado pela aceleração do desmatamento ilegal na Amazônia. Em outras palavras, as mudanças climáticas que estamos atravessando são preponderantemente resultado da ação humana.
Eventos climáticos extremos
Primeiramente, um alerta: não são todos os eventos climáticos severos que devem ser chamados de eventos climáticos extremos, ligados às mudanças climáticas. Pancadas de chuva fortes no verão e estiagem e tempo seco no inverno são fenômenos conhecidos de quem mora na cidade de São Paulo, por exemplo. Essa distinção é importante quando se trata da responsabilidade pela elaboração e execução de políticas climáticas, como veremos adiante.
Os eventos climáticos extremos são ocorrências climáticas fora da série histórica, ou seja, são a intensificação ou ocorrência de fenômenos incomuns para uma determinada época do ano. Eles ocorrem porque a concentração excessiva de gases do efeito estufa altera o padrão da atmosfera. Tyson Brown explica que, em geral, em lugares quentes, a tendência, quando se fala de eventos climáticos extremos, é de haver mais ondas de calor, ainda mais quentes, prolongadas e secas, o que pode prejudicar a qualidade do solo, causar incêndios em florestas e comprometer todo o ecossistema.
Embora Tyson Brown frise que as primeiras pesquisas científicas que relacionam as mudanças climáticas com eventos climáticos extremos, iniciadas no início dos anos 2000, não sejam tão confiáveis, e que ainda há muitos dados a serem produzidos a esse respeito, entendo que a tragédia no Rio Grande do Sul pode mesmo constituir um evento climático extremo por se encaixar no modelo atual para sua caracterização.
O ponto de não-retorno e a responsabilidade pelo enfrentamento das mudanças climáticas
Os dados reunidos até aqui demonstram que o controle da elevação da temperatura na Terra depende, em grandessíssima parte, da capacidade da espécie humana de controlar as emissões de gases de efeito estufa. Controlá-los é a forma de enfrentar as mudanças climáticas e de tentar evitar que a temperatura do planeta suba demais.
Em geral, cientistas são reticentes a fazer afirmações radicais. Por isso que a definição do momento do ponto de não-retorno é tão polêmica e que a maioria dos cientistas prefere dizer que estamos perigosamente perto dele — mas não bate o martelo sobre termos ou não o ultrapassado no âmbito das mudanças climáticas.
Vale explicar que o ponto de não-retorno se dá quando os impactos negativos sofridos por um ecossistema estão além da sua capacidade de resiliência, ou seja, de adaptação a perturbações. Deixando de lado a precisão técnica, em termos leigos, o ponto de não-retorno é aquele em que a natureza não se regenera mais e a situação não tem mais volta. Quando isso acontecer, o ecossistema que conhecemos deixará de ser como é e se transformará em outro ecossistema, ao qual não necessariamente iremos nos adaptar. Por isso, esperar pelo ponto de não-retorno é um risco que deve ser evitado.
Segundo a legislação ambiental brasileira, a responsabilidade de proteger o meio ambiente e, portanto, de enfrentar as mudanças climáticas, é de todos — do Poder Público e da coletividade, ou seja, nossa, dos cidadãos comuns. É importante que façamos a nossa parte por meio de escolhas conscientes e da adaptação a um estilo de vida mais sustentável. No entanto, isso não significa eximir o Poder Público da sua própria responsabilidade, que por coerência é bem maior do que o papel individual dos cidadãos.
O Poder Público é responsável por elaborar e executar políticas públicas. Quando uma lei é uma política pública, significa dizer que ela é uma norma programática, que busca a concretização futura de um direito ou garantia e que cria instrumentos a serem implementados pelos governantes para que se alcance esse objetivo. O meio ambiente é um direito fundamental e, por isso, existem diversas políticas públicas que visam assegurar a manutenção e o uso racional de recursos naturais (você pode conhecer algumas dessas políticas ambientais no Glossário da Climática).
Pois bem. Entender se um evento climático severo chega ou não a ser um evento climático extremo, relacionado às mudanças climáticas, é importante no tocante à sua previsibilidade. Por exemplo: se, na cidade de São Paulo, chove forte todos os anos no fim da tarde, especialmente no verão, a falta de ações preventivas como poda de árvores, limpeza de bueiros e protocolos para lidar com mais rapidez diante das constantes quedas de energia elétrica nesse período são, no meu entender, negligência e descaso do poder público. Todo ano é a mesma coisa, não tem como nenhum governante dizer que foi pego de surpresa. Aqui, se aplica o princípio da prevenção do direito ambiental, que trata das medidas de compensação e mitigação de riscos ambientais conhecidos.
De outro lado, os eventos climáticos extremos (aqueles fora da série histórica, lembra?) são ainda, em certa medida, imponderáveis. Não é possível prever com a devida antecipação quando e em que intensidade vão ocorrer. Por isso, quando se fala de políticas públicas para lidar com esse fenômeno, se fala na preparação para situações incertas — é a materialização do princípio da precaução do direito ambiental, que trata das medidas a serem tomadas diante de situações total ou parcialmente desconhecidas, ou cujos efeitos se desconhece ou se conhece de forma incipiente.
Mas como se elabora uma política pública para lidar com fenômenos incertos? O caminho passa pela implementação de medidas de mitigação para os aspectos já conhecidos dos eventos climáticos extremos. Os dados científicos indicam a tendência de esses eventos ocorrerem mais frequentemente, mais intensamente e mais prolongadamente — sabe-se que outros eventos extremos virão e, embora não se saiba quando, nem onde, nem de que maneira, é importante elaborar protocolos para salvaguardar civis, de atendimento de feridos, fundos para reconstrução de casas e planos de compensação das famílias atingidas. Peter Stott acrescenta, aos pontos que sugeri, a precificação de seguros para esses eventos. Tudo que se propõe aqui está, até o momento, idêntico aos protocolos estabelecidos no Brasil para lidar com desastres, aprimorados após Mariana e Brumadinho.
Em resumo: se a ciência ainda precisa avançar nas pesquisas para nos trazer dados mais assertivos para o aprimoramento das políticas públicas climáticas e se ainda não for possível prever e se antecipar à ocorrência desses eventos, é importante que haja regras preestabelecidas para organizar as diversas agências governamentais para prestar assistência aos atingidos de forma mais rápida e coordenada.
*Letícia Yumi Marques é doutoranda em Direito (UFPA), mestra em Sustentabilidade (USP), especialista em Direito Ambiental (Mackenzie), pós-graduada em Direitos dos Animais (Universidade de Lisboa) e em ESG na Prática: Diversidade e Inclusão nas Empresas (FGV-Law) e bacharel em Direito (PUC-SP). Vencedora do prêmio Rising Star of The Year 2024 – Environment, da publicação inglesa The Legal 500, hoje atua como professora nos cursos de extensão da Universidade Presbiteriana Mackenzie e como advogada.