“A percepção emergente da natureza enquanto sujeito molda a forma como abordamos o Direito hoje no Instituto Pro Bono”

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Nadia Barros*

 

No contexto da emergência climática, o direito internacional dos direitos humanos deveria se preocupar tanto com uma Terra habitável quanto com os seres humanos que a habitam. Nesse sentido, acrescentar direitos mais que humanes ao quadro jurídico dos direitos civis, políticos e socioeconômicos pode ser uma mudança necessária à atual abordagem jurídica, uma vez que a perspectiva ecocêntrica dos direitos poderia abarcar danos causados aos não-humanes, reconhecendo o direito intrínseco da natureza a ser sadia, além do direito humano a um meio ambiente sadio.

 

Como toda construção social, os direitos humanos são um produto de seu tempo. Cada vez que houve um movimento para conferir direitos a um novo ser, a proposta soou impraticável e até absurda. Isso aconteceu, por exemplo, no debate sobre a Décima Terceira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que proibiu a escravatura. Como destacou Christopher D. Stone no artigo “Should trees have standing?”, que na década de 1970 deu início ao movimento que defende que devem ser concedidos direitos legais ao meio ambiente, os mesmos de que gozam os seres humanos: até que algo então considerado como um objeto receba direitos, este objeto se trata de uma coisa, de um recurso para nosso uso.

 

Um novo paradigma jurídico é necessário para reimaginar nosso quadro especista, que responda aos desafios sem precedentes da emergência climática e que crie uma realidade democrática para todas as espécies, afastando nossa tirania antropocêntrica.

 

A noção de direitos mais que humanes desenvolvida em projetos pioneiros como o Moth, na Universidade de Nova Iorque, tem sido trabalhada no Brasil por iniciativas interdisciplinares como Sumaúma, que aninha os direitos humanos dentro de uma gama muito mais ampla de direitos ecossistêmicos, denotando nossa existência em um cosmos que não criamos.

 

Indiscutivelmente, a disposição legal mais debatida no crescente campo dos Direitos da Natureza é a Constituição do Equador de 2008. Graças a ela, o Tribunal Constitucional equatoriano estabeleceu uma jurisprudência vinculativa em diversos casos, esclarecendo aspectos do campo dos direitos da natureza e o vinculando a outros direitos constitucionais. Contudo, o Equador não é um exemplo isolado. De acordo com o Monitor de Jurisprudência Ecológica, mais de uma dezena de países têm trabalhado para desenvolver essa jurisprudência. Na Colômbia, o Tribunal Constitucional reconheceu o rio Atrato como pessoa jurídica com direitos, enquanto o Supremo Tribunal de Justiça deu o mesmo reconhecimento à Floresta Amazônica. Tribunais da Índia também reconheceram os rios Ganges e Yamuna como sujeitos de direitos. O movimento global emergente dos Direitos da Natureza também tem exemplos legislativos no Panamá, na Bolívia e em municípios do Brasil, congregando cientistas e ativistas a combater a discriminação da natureza por meio da lei.

 

O Equador talvez seja, de fato, o grande exemplo de como a fertilização cruzada de diferentes formas de conhecimento e de estar no mundo pode gerar uma ação eficaz pelos direitos da natureza. A proposta de Kawsak Sacha, de floresta enquanto ser vivente, que possibilita o Sumak Kawsay, projeto desenvolvimentista aliado ao bem-viver, empoderou a comunidade Sarayaku na negociação jurídica com petrolíferas, reformulando o debate moral e alcançando mudanças legais, ora refletidas na nova Constituição. Kawsak Sacha é uma estratégia multifacetada de defesa elaborada pelo povo Sarayaku em favor do reconhecimento da natureza e dos não-humanes como seres iguais aos humanos — uma proposta de defesa do direito ao território e originada do território, cunhada na cosmologia Sarayaku e transformada em um verdadeiro movimento transnacional de proteção da natureza e dos encantados que a habitam.

 

A percepção emergente da natureza como sujeito constrói, assim, uma complexa colcha de retalhos jurídica, simbólica para defensores ambientais e de direitos humanos e mais que humanes.

 

A ideia de justiça ambiental se atrela ao projeto do Estado de Direito e a iniciativas anticorrupção, uma vez que em países como o Brasil o desmatamento é a principal causa das emissões de gás carbônico e defensores ambientais são quem mais corre risco de morte por ativismo, como a Global Witness recentemente apontou. Lideranças indígenas, em particular, são quem luta de forma mais eficaz por uma Terra habitável, no entanto, são também as primeiras a sofrerem com as consequências das alterações climáticas e com deslocamentos provocados por catástrofes, além de serem vítimas de represálias pelo seu ativismo.

 

Ao lado do primeiro advogado indígena do Brasil, Paulo Pankararu, liderei a criação no Instituto Pro Bono do projeto que fomentou o início da Rede de Advogados Indígenas do Brasil, dando visibilidade a um novo campo de advocacia no país. A experiência tem revelado como o antropocentrismo jurídico moldou negativamente nossos estudos, prática e imaginação, impedindo-nos de enfrentar desafios ambientais e sociais contemporâneos.

 

Perguntarmo-nos o que significa viver com outros seres da Terra como se todos nós importássemos implica em dizer que a fauna, a flora e a funga merecem não só nossa consideração ética, mas também o reconhecimento de sua personalidade jurídica. Assim, a percepção emergente da natureza enquanto sujeito, informada pelas cosmologias indígenas, molda a forma como abordamos o Direito hoje no Instituto Pro Bono. Reunir na Climática informação sobre esse tema e aprofundar a maneira como ele é estruturado e divulgado são passos fundamentais para nós no combate da atual emergência climática.

 

*Nadia Barros é cientista social e advogada. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (PPGHDL), da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e recentemente aprovada com Bolsa de Mérito pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Direito da Universidade da Califórnia (UC Berkeley). Integrou equipes de think-tanks e organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior e, desde 2011, compõe a equipe do Instituto Pro Bono, atualmente, como Diretora Adjunta da organização e responsável pelas iniciativas de Justiça Climática e fortalecimento da advocacia indígena.

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