A Cura nos territórios
Junior Nicacio Farias*
A cidade de Boa vista, capital do estado de Roraima, foi uma grande maloca Wapichana, conhecida como “maloca de palha”. Seus extensos vales de lavrados, hoje ocupados por fazendas, cidades e lavouras, foram áreas sagradas dos Wapichana, onde se cultuavam as crenças e os rituais.
O homem branco com palavras mansas encantou muitos de nossos grandes tuxauas e aos poucos foi mostrando sua verdadeira alma e ganância sobre o território. Os Wapichana perderam suas terras, por longos séculos foram escravizados e “virados” peões de fazenda. Contam os mais velhos que as práticas culturais, as rezas, as danças, os rituais eram praticados longe das fazendas e dos missionários. Nossos pais e avós nas escolas eram ensinados a falar o português. Eram proibidos de falar a língua Wapichana.
A virada da luta veio com a grande assembleia dos povos indígenas de Roraima em 1970, que teve como principal pauta demarcar os territórios. Infelizmente o Estado, novamente, priorizou os seus “amigos fazendeiros” e demarcou a terra dos Wapichana em ilhas, ou seja, pequenas porções de terra. A maior parte dos territórios sagrados ficaram de fora da demarcação.
Com a terra demarcada, os Wapichana resolveram “pintar de urucum” o seu território, ou seja, resgatar a cultura, a língua, as crenças e os mitos. E uma das práticas culturais resgatadas foi a resolução dos conflitos internos.
Antes, todo caso era levado para a Funai, para a delegacia do município e até para o fórum. Para resolver os problemas não eram aplicadas as normas da comunidade.
A comunidade Wapichana do Pium, desde 2014, resolveu transcrever suas práticas culturais. Entendem que a aplicação da pena deve ser feita na área da comunidade, porque o indígena infrator está possuído por espírito do mal.
O caminho da comunidade ao fórum, como falam os Tuxauas, ainda é cheio de “pedra”. No poder Judiciário, o sistema de organização e os costumes dos Wapichana ainda não são compreendidos. Há de se levar em consideração que, muitas vezes, o indígena não compreende a língua portuguesa.
Quando se aplica uma pena na comunidade, o indígena infrator é levado ao malocão comunitário. As lideranças se reúnem para ouvir a versão do indígena e das famílias da vítima. A depender do caso, a oitiva é feita em separado para evitar constrangimentos. Toda reunião é feita na língua Wapichana sob a coordenação do Tuxaua. Na maior parte, são as mulheres que tomam posição e dão longos conselhos com palavras firmes. Ao final das falas se chega uma decisão, e, dependendo do caso, a pena pode ser de advertência, assinar termo de compromisso, prestar trabalhos comunitários etc.
Enquanto estiver no cumprimento da pena, o indígena não poderá se ausentar da comunidade, ficará limitado a participar de alguns eventos comunitários. Todo mês as lideranças se reúnem para avaliar seu comportamento.
Para os Wapichana, a palavra tem força e não pode ser esvaziada. Isso quer dizer que os conselhos das mulheres são lei.
Tirar um indígena do seu território, para os Wapichana, não fortalece o seu sistema político.
*Junior Nicacio Farias, do povo Wapichana, é advogado, mestrando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e professor voluntário do Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. Atualmente vive na comunidade Pium, na região Serra da Lua, no município de Bonfim, em Roraima.