Experiência de ser entre dois mundos
*Verá Yapuá
Sempre tive muitos sonhos e, mesmo em meio a dificuldades da vida, procurava ter ânimo e pensamentos voltados para um futuro promissor; sempre interessado em leituras básicas da literatura brasileira, buscava ter um conhecimento mais próximo da realidade sem incorrer em entendimentos do senso comum em meio a dificuldades – cabe destacar que até falta de comida já foi episódio na minha vida – junto de minha mãe e mais seis irmãs e irmãos.
Após o término do Ensino Médio (educação básica) – meio tarde, diga-se de passagem –, aos vinte anos procurei ir além do que a maioria da juventude Guarani se permite, no sentido de contato com o mundo não Guarani (Juruá reko).
Ingressei em 2015 no curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria, situada no interior do estado do Rio Grande do Sul e adentrei em uma lógica totalmente diversa daquela que é prática do nhande reko (modo de ser Guarani).
Sendo o único Guarani na instituição, além de ter que lidar com as relações interétnicas com colegas de mais de oito povos, à época, sempre estive na intensa busca de poder encarar a relação com a estrutura pública da Universidade, que – mesmo, por nossa mobilização, tendo casa de estudante específica para estudantes indígenas – não dispõe ainda de uma estrutura que, de fato, contemple as questões étnicas culturais dos povos; não há espaço para reza, momentos de concentração espiritual. Eu vivia em um ritmo sempre acelerado.
Buscando me libertar da burocracia da instituição e dos dogmas próprios do curso, a partir do terceiro semestre me vinculei a atividades de extensão universitária, prestando apoio jurídico e orientações para comunidades indígenas da cidade de Santa Maria e região.
O que me marcou?
Na minha primeira estada em campo em uma comunidade Guarani em situação de acampamento, ao ter que fazer um relatório sobre a situação me deparei com os questionamentos: o que eu faço? para que serve o Direito?
Assim, a partir daquele momento, me seguiu uma sensação de impotência e de não conseguir continuar no curso de Direito e me tornar um jurista, pois – já passados 27 anos de Constituição Federal, na época – tudo me pareceu letra morta de lei. Também me ocorreu que talvez eu só estivesse alimentando mais uma engrenagem de um suposto Direito sem condições de produzir mudanças de fato.
Segui os semestres seguintes buscando conselhos e tendo que lidar com a dificuldade de aceitar que aquele era um caminho que traria pontos positivos para meu povo.
Sempre convivi com a indecisão de seguir ou não o caminho jurídico, ora por me atentar que, a partir de nossos ensinamentos tradicionais, não é saudável para o espírito estar em contato extremo com o mundo do Juruá, ora por ouvir que é necessário que tenhamos um Guarani empenhado nessa luta, alguém que consiga traduzir o juridiquês para uma linguagem simples, e mais ainda, na língua Guarani.
A minha primeira visita em campo, considerada parte da trajetória jurídica, marcou-me pelo fato de, mesmo tendo já passado pela mesma situação, eu não ter consciência precisa da situação degradante que tudo isso é, essa realidade sem o mínimo de segurança jurídica ou direitos assegurados.
A partir de um olhar mais técnico e conhecendo a legislação, concluí que a situação do povo Guarani é uma das mais tristes, no sentido de desrespeito aos nossos direitos. Ao mesmo tempo, é muito fortalecedor saber que mesmo em situações de extrema vulnerabilidade temos nossas opy (casa de reza), nossos kokue (roças) e o vy’a reko (alegria).
Esses dois mundos me marcam, pois vivo transitando entre eles. Mas passo que me fortaleço na vida política e profissional, sempre tenho a sensação de estar em dívida com a vida do ser Guarani.
*Verá Yapuá pertence ao povo Mbya Guarani, do Rio Grande do Sul. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) e assessor jurídico e de política institucional na Comissão Guarani Yvyrupa.