Atuação de entidades ligadas ao Conselho Indigenista Missionário (reprodução/Instagram)
Carta assinada por 22 organizações da sociedade civil que estão atuando na assistência emergencial aos povos indígenas atingidos pelas enchentes no Rio Grande do Sul divulgou em 16 de maio uma carta sobre a situação dos indígenas no estado. A carta faz um balanço da assistência emergencial e das medidas que devem ser assumidas pelo poder público.
“Os povos indígenas constituem os maiores agentes de enfrentamento à crise climática global, ao passo em que são os primeiros a sofrerem as piores consequências da devastação ambiental”, diz a carta aberta, que também relata ações emergenciais realizadas nas comunidades Mbya Guarani, Kaingang, Xokleng e Charrua, em 67 aldeias distribuídas por 35 municípios. De acordo com o documento, foram atendidas 1300 famílias indígenas em dez dias de ações.
Leia a carta aberta na íntegra:
Articulação indigenista no RS
Maio de 2024
Essa carta é direcionada a toda sociedade do Rio Grande do Sul, do Brasil e também à comunidade internacional, mas especialmente às instituições e órgãos públicos das esferas federal, estadual e municipal, buscando oferecer-lhes um contexto fidedigno, bem fundamentado e atual da situação indígena do estado frente à calamidade climática que estamos enfrentando. Nosso objetivo é informar, salientando o papel da sociedade civil organizada no atendimento emergencial aos afetados, e, principalmente, reivindicar por uma maior atuação e comprometimento dos governos, por meio de seus braços operacionais, a ampliar urgentemente o suporte aos territórios e estabelecer aqui um núcleo multi-institucional de atuação de emergência, reconstrução e consolidação de assistência às famílias indígenas.
Constituímos de forma célere uma articulação plurinstitucional entre organizações da sociedade civil indigenistas, indígenas e atores governamentais, com o objetivo de, em curto prazo, reunir e sistematizar informações sobre os territórios indígenas afetados pelas enchentes. De forma concomitante promovemos ações coordenadas que asseguraram a arrecadação e o envio de mantimentos a todas as famílias indígenas das regiões afetadas ao alcance deste coletivo.
Em 10 dias, foram atendidas por estas ações 67 aldeias de 35 municípios, abrangendo mais de 1.300 famílias das etnias Mbya Guarani, Kaingang, Xokleng e Charrua. Estas ações foram imprescindíveis para a mitigação dos efeitos dessa catástrofe climática sobre as comunidades indígenas, sobretudo nos aspectos de segurança alimentar e hídrica, saúde e conforto térmico, com a entrega de cestas básicas, água potável, kits de limpeza e higiene, roupas, cobertores, colchões, lonas e ração animal.
Nossa articulação envolve 17 entidades da sociedade civil e servidores públicos de órgãos governamentais. No entanto, os recursos humanos, financeiros, materiais e a abrangência geográfica são limitados frente ao resultado que se necessita, qual seja, assegurar o amparo emergencial para todas as comunidades indígenas do estado enquanto os efeitos da calamidade persistirem.
Embora o trabalho tenha alcançado resultados notáveis, é evidente, até este momento, a ausência de um processo ágil de coordenação e resposta a emergências climáticas por parte das autoridades públicas competentes. Em que pese este coletivo conte com servidores engajados e empenhados em sua missão pública diante de uma catástrofe sem precedentes, há uma lacuna na formulação e implementação de uma política pública indigenista que coordene, aglutine e intersetorialize os diversos compromissos legais que cabem ao poder público. Sem esse eixo central, nos parece improvável garantir a continuidade da atuação coletiva voluntária, num horizonte em que os impactos negativos vão se desdobrar por anos – ou mesmo serão perenes, dado o cenário de mudanças do clima.
Quando as águas começarem a baixar e a solidariedade que move as ações de apoio não for suficiente para atender todas as demandas, é imprescindível que o poder público tenha ocupado seu devido lugar, assumindo suas obrigações. Se faz necessário, então, que as demandas emergenciais das aldeias passem a ser tratadas como parte das políticas assistenciais e de gestão ambiental e territorial, visando atender a todos os territórios, com recursos financeiros, estrutura física e de pessoal. Sem olvidar que os povos indígenas constituem os maiores agentes de enfrentamento à crise climática global, ao passo em que são os primeiros a sofrerem as piores consequências da devastação ambiental.
A partir deste panorama, solicitamos, como próximos passos no enfrentamento da maior catástrofe climática do RS:
- Que seja designada uma instância coordenadora das ações emergenciais de resposta à crise, com participação das comunidades indígenas, frente ao contexto da atual emergência climática no RS;
- Que sejam qualificadas e implementadas estruturas de enfrentamento a este evento climático extremo nos órgãos públicos responsáveis pela política indigenista, sobretudo na FUNAI, e se crie uma logística de atuação junto a todas as aldeias para mapeamento e suprimento das necessidades mais urgentes;
- Que o poder público formalize estrutura(s) física(s) própria(s) como referência para gestão e logística de donativos às comunidades indígenas afetadas pelas enchentes. Sugere-se que, emergencialmente, a SESAI, o DSEI e seus polos base assumam essa responsabilidade, inclusive de coleta, separação e destinação logística de itens e materiais doados;
- Que todas as terras de propriedade do estado do Rio Grande do Sul habitadas por comunidades indígenas, envolvidas em negociação com a União para abatimento da dívida, sejam imediatamente convertidas em Reserva Indígena, uma vez que a dívida encontra-se suspensa por três anos;
- Que as comunidades indígenas sejam beneficiárias de medidas emergenciais, tendo menção específica e qualificada de atendimento previstos com ações e estratégias no Plano e Cronograma de Governo RS que será apresentado ao governo federal, como contrapartida à suspensão da dívida que o estado gaúcho tem com os cofres públicos da União;
- Que a partir do montante destinado ao socorro e reconstrução do estado do Rio Grande do Sul sejam garantidos recursos específicos para as comunidades indígenas em termos de infraestrutura, vias e estradas de acesso às aldeias, energia elétrica, internet, água potável e saneamento básico, reconstrução e melhorias em moradias, casas de reza e escolas; bem como para o fortalecimento das condições de soberania e segurança alimentar dos povos indígenas em seus territórios;
- Que a partir do mesmo montante sejam garantidos recursos específicos para a gestão territorial e ambiental das terras indígenas como forma de promover o etnodesenvolvimento das comunidades, bem como de estimular a restauração ecológica dos biomas Pampa e Mata Atlântica e a retomada do desenvolvimento econômico do estado em bases sustentáveis;
- Que os três entes federados contribuam na melhoria das condições de saúde das aldeias, com infraestrutura adequada para os atendimentos, equipes multidisciplinares completas e acolhimento às condições de saúde mental e do desenvolvimento do bem-viver, especialmente em momentos de crise;
- Que nas políticas e ações a serem desenvolvidas no âmbito da cultura, dentro do plano de recuperação econômica do estado, sejam contemplados e citados de forma específica trabalhadores e manifestações culturais dos povos indígenas do RS, com alocação de recursos específicos; e que haja provisão orçamentária para o desenvolvimento e a implementação de políticas públicas voltadas à confecção e comercialização do artesanato indígena, como fonte de geração de renda das famílias, assegurando legalmente sua exposição e venda em espaços públicos urbanos;
- Que o Governo do Estado do RS assegure a infraestrutura e os recursos necessários à retomada do adequado funcionamento do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (Lei Estadual 12.004/2003), garantindo plenamente a participação das/os conselheiras/os indígenas das diferentes regiões deste estado e reconhecendo seu papel na proposição, orientação, articulação e fiscalização das ações implementadas pela administração pública estadual junto à população indígena; que também assegure, ainda este ano, a realização do X Fórum da Cidadania dos Povos Indígenas, evento bianual que não ocorre desde 2019, e cuja importância encontra-se ampliada pela atual crise;
- Que sejam empenhados esforços para publicação do Decreto que institui, no âmbito do Sistema Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, a Estratégia Estadual de Fomento dos Pontos Populares de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, conforme tramita através de processo administrativo (PROA 24/2100-0000425-2);
- Que seja criado um Subsistema de Assistência Social Indígena em âmbito emergencial pelo Poder Executivo Federal, e que o Governo do RS encaminhe uma proposta de lei de criação de um subsistema de assistência social indígena no âmbito do Sistema Único de Assistência Social/SUAS ao Presidente da Câmara dos Deputados, e ao Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, com urgência;
- Que anualmente sejam garantidos recursos estaduais com destinação específica para ações de enfrentamento às emergências climáticas nas Terras Indígenas e aldeias do RS;
- Que sejam empenhados todos os esforços nos três níveis da federação para garantir o acesso à terra, à regularização fundiária e à infraestrutura digna nos territórios indígenas, com o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação nestes espaços que, neste contexto de emergência climática e crise humanitária, são fundamentais para garantir a sobrevivência e o futuro das próximas gerações.
E cada uma e cada um desse grupo, especialmente os das organizações indígenas, que criaram amplas redes de articulações, como a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul) e Conselho de Articulação do Povo Guarani (CAPG) – sem as quais não teríamos êxito nessa empreitada – seguiremos apoiando dentro de nossas potencialidades, capacidades e disponibilidades; cientes, todos nós, de nosso papel e lugar nesse contexto: de agentes intencionados a transformar as realidades de injustiça, insegurança, vulnerabilidade e desigualdade, sempre atentos à garantia dos direitos, respeito e solidariedade, na perspectiva do Bem Viver. Neste momento, este objetivo nos parece difícil e longínquo, mas todos juntos – reunidas, reunidos; unidas e unidos – sentimos e mostramos que pode, sim, haver um outro mundo possível.
Seguimos.
AEPIM, Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários
Amigas da Terra Br
AMRIGS, Associação Médica do Rio Grande do Sul
ANMIGA, Articulação Nacional das. mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade
APERGS, Associação dos Procuradores do Estado do Rio Grande do Sul
ARPIN-Sul, Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul
ASIBAMA/RS, Associação dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e PECMA do Rio Grande do Sul
ASSEMA/RS, Associação dos Servidores da Secretaria de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul
CAPG, Conselho de Articulação do Povo Guarani
CGY, Comissão Guarani Yvyrupa,
Cimi, Conselho Indigenista Missionário
Coletivo Cidade na Luta
Conselheiros e colaboradores do CEPI, Conselho Estadual dos Povos Indígenas do Rio Grande do Sul
CTI, Centro de Trabalho Indigenista
FLD-COMIN-CAPA, Fundação Luterana de Diaconia-Conselho de Missão entre Povos Indígenas-Centro de Apoio e Promoção da Agroecologia
IECAM, Instituto de Estudos Culturais e Ambientais
Instituto Curicaca
Organização Comunitária No Coração da Agulha
Rede Sul de Restauração Ecológica
Servidoras da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Infraestrutura
Servidores da Secretaria Estadual de Saúde
Tela Indígena