“Nossas escritas e vozes ultrapassaram fronteiras para intensificar o papel para o qual fomos formados”

pexels photo

Desafios à universalidade homogeneizante

Judite Guajajara*

 

Dinamismo é categoria que desafia as históricas, e também constantemente remodeladas, estratégias colonizadas de imposição de transitoriedade às identidades indígenas, como se delas se pudesse desprender. 

 

A cronologia até o Brasil República foi marcada pelas constantes adaptações da legislação e também das políticas de Estado e de Governo. No caso indígena isso representou a própria institucionalização das violências e violações essencialmente qualificadas pelo silenciamento do diverso.

 

Transitar pela história indígena brasileira é perceber as diversas formas possíveis, e até inimagináveis, de materialização desse silenciamento. O reformatório Krenak, enquanto primeira cadeia pública oficializada e direcionada aos povos indígenas reflete bem minha afirmação, já que diversos relatos a apresentam como instrumento de homogeneização forçada, interface do paradigma assimilacionista, cuja prioridade não se assentava em ressocialização ou algo do tipo, mas principalmente estava a serviço da tentativa de homogeneização das identidades indígenas ali aprisionadas.

 

Desde o AI-5, período em que foi instituído, essa estratégia permanece sendo efetivamente executada a despeito da remodelagem que sofreu. Hoje, é nos presídios, e isso inclui a própria norma que os regula, que encontramos vozes indígenas que podem ser traduzidas em verdadeiros pedidos de socorro, e talvez por resistirem em língua materna estrategicamente são ignoradas por quem as aprisiona. 

 

Ainda como estudante de direito na Universidade Federal do Maranhão, em 2016, convidada por uma organização de direitos humanos por ser graduanda em direito, indígena, falante fluente do Zeèg Ete, língua materna do povo Guajajara, a qual pertenço e para verificar uma denúncia de maus tratos, realizei uma visita ao presídio feminino da capital do estado do Maranhão, São Luís.

 

Me deparei com duas indígenas encarceradas. Um mundo que até então para mim era tão estranho quanto para elas, indígenas Guajajara enclausuradas não só nas grandes, mas também em um mundo em que estranhos tipo de alimentação, de vestir, da língua, das crenças, da religião, da cultura e o próprio sentido de existência passaram a ser impostos em detrimento dos seus originários. 

 

Sob a pretensão de ressocializar, o Estado ali fazia mais duas vítimas de sua histórica tentativa de silenciamento do diverso pelo processo de homogeneização. Existir enquanto advogada indígena ganhou, a partir daí, mais um significado. Ampliar o olhar para os campos historicamente marginalizados, mas tão cruéis quanto as armas que assassinam nossos corpos e almas nos territórios.

 

A Constituição de 1988 instituiu o arcabouço jurídico que permitiu a consolidação do regime democrático no Brasil e é somado a ele que a advocacia indígena incorpora o direito criado e exercido no chão dos territórios para criar estratégias de defesa de garantias essenciais à existência física e cultural dos povos indígenas. 

 

Ao longo dos últimos anos, nossos esforços se estenderem para além dos limites da jurisdição brasileira, nossas escritas e vozes ultrapassaram fronteiras para intensificar o papel para o qual fomos formados. Exemplo disso foram as Medidas Cautelares deferidas em favor dos membros dos povos indígenas Guajajara e Awa, em isolamento, da Terra Indígena Araribóia. Oportunidade em que, como membro daquele território, me somei a outros colegas para evitar o extermínio de nossas existências pela omissão do governo brasileiro em enfrentar adequadamente a pandemia da COVID-19 que seguia fazendo vítimas em nosso meio.

 

*Judite Guajajara é indígena, advogada da Rede de Advogados Indígenas do Brasil e mestre em Direito, Estado e Constituição pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA).

Conteúdos relacionados

tribunal internacional

Opiniões Consultivas em Mudanças Climáticas – Como fica a responsabilidade dos Estados?

O desenvolvimento das energias renováveis no contexto brasileiro

Agricultura Sustentável: Conciliando a Produção Agrícola e a Segurança Alimentar com a Preservação Ambiental

pexels tomfisk

Vanessa Hasson e os Direitos da Natureza: “ferramenta pedagógica de transformação”